domingo, 19 de junho de 2011

Corpo comestível e o corpo como matriz de Rosa Esteves*

O corpo sempre esteve presente no universo artístico, seja como modelo idealizado, seja nas experiências radicais da body art. E assim é nos trabalhos de Esteves, entre as obras musealizadas em acervos, objeto primordial deste estudo. Para a artista, contudo, o corpo não surge como figura, suporte, material ou lugar para a arte, esses são apenas recursos em suas obras, nelas o corpo vai além, melhor, o corpo da própria artista existe como matriz mítica e filosófica. Mítica por ser fundante do indivíduo, de sua existência e de suas experiências, permitindo o alcance de memórias ancestrais e expressões artísticas primevas. Filosófica, pois, se apresenta como pergunta e investigação acerca das políticas corporais, questões de gênero, memória corporal e da ação do tempo sobre os corpos humanos.
            Alguns de seus trabalhos são exemplares de suas experiências artísticas, como Deusas (2000), em que seu corpo serve como suporte e meio para a pintura a fim de que, pela tinta espalhada no corpo, sejam compartilhados imagens e sentidos com a pintura corporal indígena e africana em que o corpo é ornamentado com fins rituais e estéticos, pelo título, com o princípio da experiência sagrada e religiosa, e, pela técnica, com a história da arte ao dialogar com as experiências performáticas do corpo como pincel de Yves Klein.
 

Fig. 1. Yves Klein
Antropometrias
[missão do artista] "realizar a única obra prima, ele próprio, constantemente"



Fig. 2. Rosa Esteves, Deusas, 2000


Pupas (2003) são figuras femininas moldadas com a argila a partir de partes do corpo da artista e remetem a figuras pré-históricas que resgatam e questionam a imagem da mulher-deusa, mãe de todos e provedora, mas, ainda, mãe elementar, não plenamente desenvolvida, deusa-menina, em seu casulo. Nutritivas (2004) mantém o tema de Pupas, levando-o adiante, são bonecas de argila recheadas com sementes que germinam, transformando a deusa-menina em deusa-mãe, solo fértil para as sementes ali depositadas, a artista tomando, então, não apenas a imagem da deusa arquetípica, mas promovendo a união de Gaia, elemento primordial e deusa cósmica, e Deméter, a terra cultivada, convertendo sua obra em metonímia para o próprio planeta Terra.




Fig. 3. Rosa Esteves, Pupas, 2003

A performance Corpo comestível (2004) atua como ponto alto das investigações de Rosa Esteves, nela o corpo da artista é transmutado em pedaços de chocolate e oferecido ao público para ser devorado num rito canibal, em que a artista realiza sua entrega simbólica mediada pela performance e pela multiplicação do corpo. Com a artista abandona-se a idéia do corpo obsoleto diante da tecnologia atual para se ter o corpo que se desdobra para além de si, indo da investigação intelectual da pintura, passando pelo tornar a arte solo para germinação de sementes e sua transformação em plantas até o corpo-alimento.
Assim, em sua companhia, passa-se do espanto da percepção da existência confirmada pela forma gravada no papel, à experimentação dessa existência como fertilidade e desdobramento no corpo tornado solo, e, finalmente, à entrega completa da existência em forma de alimento. Esteves ao mesmo tempo dá seu corpo (artista tornada carne e alimento) e abandona o papel intelectual de fundo renascentista do artista demiurgo. O artista já não apenas cria em seu ateliê, mas rege um ritual, ao ser transformado em mestre de cerimônias, xamã e líder. Artista como messias, que na performance Corpo comestível, também, à evocação da ceia cristã em que o Cristo ao mesmo tempo oferece simbolicamente seu corpo: “Este é meu corpo que é dado por vós, comei e bebei em memória de mim” e ministra o banquete.



Fig. 4. Rosa Esteves, Corpo comestível, 2005

O corpo como mesa ou ceia tem paralelos na obra de outros artistas como nos jantares-performance realizados de 1970 a 1983 por Lynn Hershman Leeson, nos Estados Unidos, ou na Festa (1959), de Meret Oppenheim, em que para uma celebração de primavera em Berna, na Suíça, o artista oferece um banquete sobre o corpo nu de uma mulher. Para Oppenheim a festa "não era apenas de homens, nem apenas uma mulher nua para homens, mas um rito de fertilidade para homens e mulheres, diferente da Páscoa”[1], apontando, também, como em Esteves, para as relações entre corpo, alimentação e rito místico-sagrado.


Fig. 6. Jantar-performance de Lynn Hershman Leeson



Fig. 7. Meret Oppenheim, Festa,1959

Na obra de Rosa Esteves não se encontra a relação de fundo sado-masoquista, tão recorrente em performances em que o corpo se oferta como astro principal na cena, mas, sim, a participação num ritual de ceia simbólica, mais próxima do rito cristão da eucaristia, em que come-se o corpo do Cristo representado pelo pão e pelo vinho no mistério da transmutação dos materiais, ou  da antropofagia tupinambá em que o outro pode servir de alimento para a própria identidade do grupo, ressaltando que, no caso de Esteves, é a própria artista multiplicada e tornada outro dando-se a comer. Tem-se, então, o artista como alquimista que mistura materiais e ritos pagãos e cristãos por meio de sua arte, transformando a própria arte em matéria comestível e o alimento em arte: doce que se transmuta em arte; arte que se transmuta em alimento.
            O trabalho de Rosa Esteves pode ser visto como uma arte orgânica e única, em que as obras são criadas uma a partir da outra, sem rompimentos, num ato criativo contínuo, como uma espécie de investigação que se aprofunda, em que respostas geram novas perguntas, impedindo a paralisação da ação. Nesse sentido, Corpo comestível aponta e desenvolve as obras que a precederam, iluminando a obra da artista em dois sentidos, um para frente e outro para trás. Os trabalhos anteriores não devem ser vistos como embriões, pois são obras maduras, mas como parte do discurso investigativo que levará à performance. Deusas ser visto como a idéia corporal, o corpo-imagem e germe performático, Pupas Nutritivas corpo é terra, suporte, berço e útero para a semente que se tornará alimento em Corpo comestível: corpo e arte tornados alimento maduro, pronto para ser degustado. Se, nas pinturas, pretende-se estender a existência do corpo, ao menos em imagem, registro, nas Nutritivas o corpo é destruído pelo germinar da semente, o corpo-solo rasga-se para dar lugar à vida vegetal, e sua reprodução de chocolate chega, enfim, ao ritual antropofágico em que o corpo torna-se alimento.

[1] Apud http://bodytracks.org/performances/page/8/. Tradução da autora.

Texto originalmente publicado como texto de parede e em catálogo de exposição da artista. Ribeirão Preto: Museu de Arte de Ribeirão Preto Manuel-Gismondi, 2007.

Resenha: Julio Villani - It’s a Game

           It’s a Game intitula e explica o livro de Philippe Piguet e Michael Asbury sobre a obra do brasileiro radicado em Paris Julio Villani.
Piguet apresenta a obra do artista partindo de um de seus trabalhos, um bilboquê gigante, e explora os vínculos entre a obra de Villani e o brinquedo formado pela tríade bola, haste e fio. O próprio livro pode ser, ele também, tomado a partir do signo do brinquedo ou jogo, sendo fio que articula a obra e seu autor ao universo da arte, nas mãos de um espectador/leitor/jogador.
Divida em seções, a partir de determinadas séries de Villani – no livro –, a obra surge, ao folhear das páginas, como giros de bilboquê, constituindo-se de forma dinâmica diante do leitor, permitindo-lhe, ainda, a cada novo encaixe das peças, fazer uso não só do instrumento que tem em mãos, mas também de sua própria habilidade ao jogar, a fim de que, como nas palavras de Asbury, na Introdução, o livro funcione como um baralho que permita a cada tiragem novas interpretações do mesmo conjunto de cartas.
It’s a Game torna, assim, a obra de Villani um brinquedo portátil, visitável quando se queira, independendo da localização física da obra em galerias, museus ou ateliê do artista.

Julio Villani - It’s a Game
PIGUET, Philippe; ASBURY, Michael
Archibooks + Sauterau Editeur, Paris, 2010

in Revista Dasartes, nº 15, 2011.