As grandes cidades, como São
Paulo, vêm passando, nas últimas décadas, pela busca constante de embelezamento
e renovação de seus centros urbanos, considerados sítios degradados e abjetos.
Ao mesmo tempo em que se mantém a idéia de que suas periferias são locais de
desorganização e feiúra.
Segundo
Susan Sontag, “Ao nos ensinar um novo código visual, as fotos modificam e
ampliam nossas idéias sobre o que vale a pena olhar e sobre o que temos direito
de observar, constituem uma gramática, mais ainda, uma ética do ver.”[1].
Neste sentido, as obras do fotógrafo Mário Rui Feliciani apresentam aspectos da
cidade em que a beleza e o detalhe interessante surgem exatamente das situações
de degeneração dos edifícios, ruas e demais aparelhos citadinos, nos
demonstrando uma outra ética com respeito à pátina que o tempo dá às cidades,
de maneira a transformar detalhes em constructo estético.
Feliciani não
pretende a denúncia das condições atuais da urbanidade ou do espaço urbano
degradado, suas fotografias, diversamente, afirmam que vale a pena olhar aquilo
que é constantemente considerado cinza ou sem cor. Pela mão do artista, é
possível encontrar, ainda, vívidos contrastes e composições colorísticas, que
desafiam a lógica contemporânea do sentimento de horror diante da cidade
decomposta, e pela demonstração de seu afeto por suas paredes descascadas, a
passagem do tempo, a ação e o seguinte abandono da mão humana são transformados
em jóias estéticas.
A percepção
não convencional do fotógrafo sobre a deterioração nas cidades inverte o que
ordinariamente é percebido como algo que deve ser coberto, escondido ou
reformado, e encontra afetuosamente
estruturas estéticas no detalhe da ruína ou do caos.
Fugindo do
registro fiel da natureza, exigido pelo distanciamento do olhar – que, aos
moldes da pintura, constrói uma janela para o mundo –, Feliciani opera pela
aproximação que desconstrói a fidelidade do registro fotográfico e chega ao
detalhe, contudo seu gesto de aproximação microscópica do objeto não advém da
curiosidade cientificista, mas dos sentimentos de habitante desses mesmos
espaços em ruínas.
Ao ampliar o
que é invisível a olho nu e por meio de planificação abstrata e construtiva,
transforma a imagem em plano pictórico, negando qualquer referência à
tridimensionalidade do espaço ou a recorrência à ilusão da perspectiva,
resultando numa obra fotográfica que se avizinha da colagem, não pela
sobreposição de figuras já dadas, mas como homo faber, aquele que
constrói, no caso do artista, a imagem.
Apesar de
grande parte das obras constituírem-se como abstrações, determinadas fotos
sugerem a figuração, contudo a figura, quando surge, tem função
desestabilizadora da construção abstrata, mostrando-se como um dado inusitado
ou inesperado da composição.
Em Feliciani,
o procedimento para o encontro do que merece ser fotografado tem como pano de
fundo o acaso, que se impõe ao percurso do transeunte, contudo não é, de modo
algum, semelhante à suposta indiferença do objet trouvé dadaísta, uma
vez que exige o exercício do olhar amoroso pelos interstícios urbanisticos,
constantemente em transformação. Assim, mais uma vez, o artista, na contramão
do comportamento corrente que ordena o enclausuramento em recantos seguros,
escolhe acolher e se lançar à cidade como
um todo de interesse de sua produção artística.
Dessa forma, ao se considerar que tirar uma foto é tornar-se cúmplice
daquilo que se avalia como digno de ser fotografado, Feliciani nos convida à
reflexão sobre o que exatamente significa a ruína e o projeto urbano na
contemporaneidade.