sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Os olhos éticos de Mário Rui Feliciani


            As grandes cidades, como São Paulo, vêm passando, nas últimas décadas, pela busca constante de embelezamento e renovação de seus centros urbanos, considerados sítios degradados e abjetos. Ao mesmo tempo em que se mantém a idéia de que suas periferias são locais de desorganização e feiúra.
              Segundo Susan Sontag, “Ao nos ensinar um novo código visual, as fotos modificam e ampliam nossas idéias sobre o que vale a pena olhar e sobre o que temos direito de observar, constituem uma gramática, mais ainda, uma ética do ver.”[1]. Neste sentido, as obras do fotógrafo Mário Rui Feliciani apresentam aspectos da cidade em que a beleza e o detalhe interessante surgem exatamente das situações de degeneração dos edifícios, ruas e demais aparelhos citadinos, nos demonstrando uma outra ética com respeito à pátina que o tempo dá às cidades, de maneira a transformar detalhes em constructo estético.
Feliciani não pretende a denúncia das condições atuais da urbanidade ou do espaço urbano degradado, suas fotografias, diversamente, afirmam que vale a pena olhar aquilo que é constantemente considerado cinza ou sem cor. Pela mão do artista, é possível encontrar, ainda, vívidos contrastes e composições colorísticas, que desafiam a lógica contemporânea do sentimento de horror diante da cidade decomposta, e pela demonstração de seu afeto por suas paredes descascadas, a passagem do tempo, a ação e o seguinte abandono da mão humana são transformados em jóias estéticas.
A percepção não convencional do fotógrafo sobre a deterioração nas cidades inverte o que ordinariamente é percebido como algo que deve ser coberto, escondido ou reformado,  e encontra afetuosamente estruturas estéticas no detalhe da ruína ou do caos.
Fugindo do registro fiel da natureza, exigido pelo distanciamento do olhar – que, aos moldes da pintura, constrói uma janela para o mundo –, Feliciani opera pela aproximação que desconstrói a fidelidade do registro fotográfico e chega ao detalhe, contudo seu gesto de aproximação microscópica do objeto não advém da curiosidade cientificista, mas dos sentimentos de habitante desses mesmos espaços em ruínas.
Ao ampliar o que é invisível a olho nu e por meio de planificação abstrata e construtiva, transforma a imagem em plano pictórico, negando qualquer referência à tridimensionalidade do espaço ou a recorrência à ilusão da perspectiva, resultando numa obra fotográfica que se avizinha da colagem, não pela sobreposição de figuras já dadas, mas como homo faber, aquele que constrói, no caso do artista, a imagem.
Apesar de grande parte das obras constituírem-se como abstrações, determinadas fotos sugerem a figuração, contudo a figura, quando surge, tem função desestabilizadora da construção abstrata, mostrando-se como um dado inusitado ou inesperado da composição.
Em Feliciani, o procedimento para o encontro do que merece ser fotografado tem como pano de fundo o acaso, que se impõe ao percurso do transeunte, contudo não é, de modo algum, semelhante à suposta indiferença do objet trouvé dadaísta, uma vez que exige o exercício do olhar amoroso pelos interstícios urbanisticos, constantemente em transformação. Assim, mais uma vez, o artista, na contramão do comportamento corrente que ordena o enclausuramento em recantos seguros, escolhe  acolher e se lançar à cidade como um todo de interesse de sua produção artística.
Dessa forma, ao se considerar que tirar uma foto é tornar-se cúmplice daquilo que se avalia como digno de ser fotografado, Feliciani nos convida à reflexão sobre o que exatamente significa a ruína e o projeto urbano na contemporaneidade.



[1] Susan Sontag. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 13.




3 comentários: